O Plano Perfeito
Quarta-feira, meia noite e meia em um
bar “pé sujo” do centro do Rio de Janeiro.
O bar é característico e familiar pra
quem já se aventurou pelo centro do Rio. Pouca luz. Duas mesas do lado de fora.
Umas cinco do lado de dentro.
Durante o dia o movimento é
relativamente bom, com pratos-feitos sendo o carro chefe na hora do almoço, sem
contar o entra-e-sai regular de almas penadas em busca de cachaça ou outro
anestésico barato. Potes de conserva decoram de maneira macabra o balcão, juntamente
com um pote com um bolo de fubá em pedaços e um prato com duas sardinhas fritas
pela manhã, remanescentes de mais um dia de moscas e poeira.
O rapaz sentado no canto escuro (mais
escuro) não é um tipo muito comum por aqui. Cabelo ensebado, barba por fazer e
cara de derrotado. Até aí tudo bem, se enquadraria perfeitamente no perfil.
Porém a camisa preta com caveiras, o cinto com apliques imitando balas e o
coturno surrado, fazem dele um ser a parte deste cenário. Como uma figurinha
mal colada no álbum da vida.
Ele pediu duas garrafas de cerveja
logo quando chegou. Pediu também para que fossem abertas as duas. Já fazem
quase duas horas de quando ele entrou no bar e nem a primeira cerveja ele
terminou ainda.
Os olhos fixos na pequena TV de 14
polegadas presa no suporte da parede e com fotos de mulheres nuas penduradas. A
TV geralmente neste horário estaria reproduzindo um jornal ou então algum filme
B sem nenhum atrativo. Porém hoje é diferente. Hoje o canal está transmitindo
AO VIVO o show de alguma banda grande no Rock in Rio. Olhos fixos, porém sem
foco, como uma beata admirando uma imagem sacra enquanto ora por mais uma ou
duas semanas de vida.
Romeu é o seu nome e mesmo com a TV
em um bom volume, ele não emitiu qualquer tipo de reação. Apenas fitava o
aparelho. A história de Romeu é triste, porém intrigante. Por mais que ele
tenha tentado, não conseguiu comprar o ingresso do show de hoje. Logo o show de
hoje, onde sua banda favorita irá se apresentar pela primeira vez no Brasil. É
realmente triste, porém a parte intrigante começa agora.
Obviamente Romeu não poderia
confessar essa tragédia para seus amigos e conhecidos. Até sua mãe, sabendo de
sua paixão pela banda, perguntou pouco antes de ele sair de casa hoje: "E
então meu filho? Preparado pro show, hein? É aquela banda que você gosta né? Da
tatuagem que você fez, certo? Ouvi dizer no jornal hoje que vai ser um
showzão!" Pura maldade da vida. Sua mãe nunca se interessou pelo gosto
musical do filho. Nem mesmo quando ele apareceu com a tatuagem. Mas obviamente,
justo no dia em que ele enfrentava a maior provação de sua vida, ela parecia
estar ciente de todos os pormenores da apresentação em questão.
O rapaz também pensou em conseguir o
ingresso com um cambista, porém os preços que passaram para ele eram totalmente
absurdos. Ir ao show e tentar comprar de alguém perto da entrada? Jamais. Nunca
ele iria arriscar ser visto por seus amigos e colegas na porta do show com a
probabilidade de não conseguir o ingresso. Porém Romeu já tinha pensado em
tudo.
Durante as noites em claro dos cinco
dias após a confirmação de que ele não conseguiria ir ao show ele não dormiu,
maquinando a grande farsa de sua vida. Ele iria combinar de se encontrar com os
amigos já próximo ao show, alegando ter hora extra na empresa. Porém não
apareceria. Saindo do trabalho no horário normal ele iria para casa se vestir e
depois partiria para o bar escolhido depois de uma semana de análise no centro
do Rio.
Passaria ali todo o período do show,
já havia combinado com o dono do bar que o mesmo transmitiria o show, mediante
almoçar ali o mês inteiro. Pagamento adiantado, claro. Consultando os sites
especializados e conversando com amigos fãs da banda de outros países que já
haviam recebido o show em questão, ele sabia exatamente quais as músicas que a
banda iria tocar e de todos os detalhes que a banda iria encenar no palco.
Calculou precisamente o horário e nas suas contas, faltando 42 minutos pro show
acabar, começou seu ritual.
O rapaz se levantou lentamente. Nesta
altura já havia terminado a primeira garrafa. A outra, aberta, já estava na
temperatura ambiente, do jeito que ele planejara. Pegou a garrafa de cerveja e
começou a despejar na sua cabeça bem devagar. O líquido dourado começou a
ensopar seus cabelos. Depois foi a vez de sua camisa, suas calças e seu
coturno. Como um segundo batismo ele sentiu aquela bebida fermentada lavar
todos seus pecados. Após a última gota ele pousou o vasilhame na mesa e foi se
deitando no chão imundo do bar. Mesmo com pouco espaço ele rolou, novamente de
maneira lenta, para um lado e para o outro do piso. Uma lama de poeira e
cerveja se formou em sua roupa.
Ao se levantar ele deu uma última
olhada na TV e sorriu. A banda iniciava a canção favorita de Romeu.
A boca do balconista ainda estava
aberta quando ele botou uma nota de 20 reais em cima do pote de tremoços e
disse suas primeiras palavras da noite, as primeiras palavras de sua nova vida
sem pecados: "O troco fica pela sujeira" disse isso olhando
discretamente para o chão. Depois disso, Romeu se dirigiu até a porta do bar e
quando se preparava para o primeiro passo fora daquele ventre pútrido, porém
com um simbolismo sem igual ele retrocedeu seu pé direito, fechou os olhos e
gritou, se curvando um pouco e fechando os punhos "Metal porra!!!"
seguido de um "Uhuuull" fazendo o símbolo dos chifres com os dedos
pra cima.
Após esta manifestação e sendo alvo
de alguns olhares vindos do mundo lá fora ele continuou seu trajeto e estendeu
o braço, fazendo sinal para um ônibus parar. Não qualquer ônibus é claro. A
escolha do bar foi categórica com relação a isso, pois deveria fazer parte do
itinerário da linha que o deixaria na porta do show perdido. Lá ele encontraria
com seus amigos do lado de fora e obviamente afirmaria que o show havia sido
perfeito e inesquecível. Infelizmente não havia se encontrado com a turma na
entrada, devido a uma confusão com o local marcado.
E assim viveu Romeu. No ano seguinte
a banda em questão se separou, alegando divergências de opiniões. Realizaram
alguns shows comemorativos em reuniões esporádicas, porém nenhum deles no
Brasil. Quando se encontrava com seus amigos, estes sempre se lembravam do
show, aliviados por terem vivido aquele êxtase antes do término da banda. Romeu
obviamente botava sua máscara e sempre mencionava o momento em que os músicos
tocaram sua canção favorita. Porém por dentro essa perda sempre o corroeu e a
ferida nunca cicatrizou. Um plano perfeito, uma farsa bem sucedida e um coração
eternamente despedaçado.
por João Gouvêa em 13/11/2012,
baseado em um comentário de Raphael Glabro.
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